sábado, 21 de dezembro de 2013

Boto da Amazônia encanta, mas se torna isca para pescaria ilegal

HAROLDO CASTRO, DE MANAUS (TEXTO E FOTOS)



O boto-vermelho – também chamado de cor-de-rosa por aqueles que não vivem na Amazônia – possui grande destreza de movimentos e sua nadadeira peitoral (à mostra) demostra ampla flexibilidade (Foto: Haroldo Castro/ Época)
As histórias do boto povoam o imaginário dos ribeirinhos amazonenses. Quase todo pescador tem raiva – e, algumas vezes, medo – do animal. Esperto e rápido, o boto consegue ludibriar os ribeirinhos e logra roubar seus peixes, furando e destroçando redes de pesca. O mito do boto que se transforma em um jovem sedutor, vestido de branco, piora sua fama. A moça desprevenida que engravida acaba culpando o animal, o que deixa os homens ainda mais furiosos e ameaçados pelo boto vermelho, como ele é chamado na Amazônia.
Por outro lado, para o resto do mundo, o boto-cor-de-rosa (tradução do nome inglês pink river dolphin) é um mamífero aquático dos mais carismáticos, tão querido como baleias e os golfinhos do mar. Sua inteligência e seu elaborado sistema de ecolocalização encantam biólogos e sua velocidade e flexibilidade fascinam aqueles que conseguem vislumbrá-lo nas águas vermelhas e transparentes do rio Negro.
 
O boto pode chegar a 2,5 metros de comprimento e a pesar 180 quilos. Seu peito é, de fato, cor-de-rosa; mas dentro da água cor-de-conhaque do rio Negro ele pode parecer avermelhado (Foto: Haroldo Castro/ Época)
Um boto passa por baixo de um flutuante, cortando as águas escuras e cristalinas do rio Nego (Foto: Haroldo Castro/ Época)
Entre amor e ódio, se o boto (cor-de-rosa ou vermelho) continua dando sustos nos pescadores, ele também vem apaixonando cada vez mais os visitantes. Há cerca de duas décadas, Dona Marilda, do vilarejo Novo Airão, começou a promover a observação dos botos em um flutuante às margens do rio Negro. Muitas outras iniciativas se seguiram, inclusive a de hotéis.
Márcia Ferreira Mesquita, de 39 anos, nasceu e se criou nas redondezas da comunidade São Thomé, parte do município de Iranduba, AM. Quando Márcia era menina, o local ficava a um dia de canoa de Manaus; hoje o percurso leva apenas 30 minutos com uma voadeira. A pescadora conta que sua história com os botos começou há 10 anos, ao montar uma barraca na praia para vender bebidas e petiscos para eventuais visitantes.
Quando limpava os peixes no local (chamado hoje de Praia Amigo do Boto), ela jogava o resto na água e os botos vinham comer. Em 2007, apareceu um boto pequeno que tinha um arame enrolado no bico. “Deve ter sido maldade de algum pescador raivoso”, diz Márcia. Com a ajuda da AMPA (Associação Amigos do Peixe-Boi), o boto foi cuidado e o animal passou a visitar Dona Márcia com frequência. “Meteco foi o primeiro boto a brincar com meus filhos. Todos os botos gostam muito de brincar com bola, galho ou pedaço de pau”, afirma.
No ano seguinte, Márcia e seu marido David Coelho de Souza, com a ajuda de seus sete filhos, montaram um flutuante que fica a 50 metros da praia. Hoje, recebem visitantes de todos quadrantes, fascinados com a possibilidade de ver botos bem de perto. Márcia cobra apenas 20 reais pela experiência singular. “As pessoas podem entrar na água, sempre com salva-vidas, mas peço para que não toquem nos botos”, diz. Na verdade, quem chega perto é mesmo o boto. Curioso e brincalhão, ele roça e encosta nos banhistas, dá pequenos empurrões ou puxa o salva-vidas.
 
O autor brinca com uma bola com Meteco, o mais folgazão dos botos de São Thomé. Meteco acabou levando bola para as profundezas do rio Negro.  (Foto: Haroldo Castro/ Época)
Márcia segue as instruções normativas e, quando chega ao flutuante, oferece alguns peixes aos botos. “Sempre damos espécies que eles estão acostumados a comer, como o jaraqui. E deixamos eles com fome para que eles continuem caçando”, afirma. “Os visitantes não podem alimentar os botos, pois é preciso conhecer o comportamento e os movimentos dos animais.”
 
Márcia Ferreira Mesquita, a cuidadora dos botos da Praia Amigo do Boto, em São Thomé, oferece um jaraqui a um dos animais (Foto: Haroldo Castro/ Época)
Márcio, filho de 4 anos de Márcia e Daniel, nada embaixo d´água como se fosse um boto (Foto: Haroldo Castro/ Época)
“Os botos transformaram a vida de nossa família. Se antes David e eu tínhamos raiva por que eles rasgavam nossas redes, hoje nós nos dedicamos totalmente a eles. Queremos sua proteção”, diz Márcia. O casal pensa investir em um flutuante maior, com a comodidade de um banheiro, onde os visitantes poderão trocar de roupa para entrar na água. Pensam também organizar um pequeno museu-escola na comunidade. “Hoje considero o boto como meu patrão, é ele que dá meu sustento.”
Infelizmente, nem todos pescadores pensam como Márcia e Daniel e a situação dos botos tem se deteriorado bastante na última década, período durante o qual a população diminuiu em 10%, segundo pesquisadores da AMPA. A razão não é o contato dos botos com os turistas – este, sim, tem ajudado a criar uma maior conscientização ambiental – mas um crime simplesmente imbecil. O boto Inia geoffrensis é protegido por lei, mas ele é capturado ilegalmente com arpões e redes, assassinado de forma brutal com golpes na cabeça e seu corpo é fatiado para servir como isca na pesca de um bagre carniceiro, a piracatinga (do tupi guarani, pirá + catinga, peixe fedido).
A piracatinga era antes comercializada somente na Amazônia, mas hoje está sendo vendida em supermercados de diversas capitais brasileiras sob o nome ingênuo de “douradinha”. Antes de comprar um filé de “peixe fedido”, saiba que a “douradinha” pode ter provocado a morte de um boto!

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