quinta-feira, 8 de outubro de 2015

Golfinhos criados como atrações de parques aquáticos são reintroduzidos na natureza


Para devolver os animais de cativeiro ao mar, eles precisam se readaptar ao antigo habitat natural

Fonte: NATIONAL GEOGRAPHIC BRASIL   |   Por: Tim Zimmermann
     
« Golfinhos: será que eles falam?
No começo de janeiro de 2011, Jeff Foster, um especialista em mamíferos marinhos de 55 anos que mora em Seattle, chegou à praia de uma baía intocada perto do vilarejo de Karaca, no Golfo de Gökova, na costa sudoeste da Turquia. Perto da praia havia um conjunto de cercados flutuantes, usado na criação de peixes. Num deles, modificado de modo a medir cerca de 30 metros de frente por 15 de profundidade, dois golfinhos-nariz-de-garrafa machos nadavam em círculos. Conhecidos como Tom e Misha, ambos estavam em condições lamentáveis. O pouco que se sabia deles é que haviam sido retirados do Mar Egeu em 2006. Depois de começarem a viver em cativeiro num parque de golfinhos da pequena cidade de Kaş, em junho de 2010 tinham sido levados de caminhão ao interior e colocados num precário tanque de concreto na localidade montanhosa de Hisarönü, onde os turistas pagavam até 50 dólares pela oportunidade de se agarrar às nadadeiras dorsais e ser arrastados durante dez minutos. Próxima ao litoral, Hisarönü tem hotéis e bares baratos de nomes sugestivos como Oh Yes! e música estridente ecoando pelas madrugadas. Seria difícil imaginar local mais inadequado e desconcertante para dois golfinhos que cresceram no ambiente marinho.
Após uma campanha de protesto que durou semanas, organizada nas redes sociais por moradores escandalizados com a situação, o negócio foi obrigado a fechar as portas. No início de setembro, receosa de que os animais estavam prestes a morrer, a Fundação Born Free, com sede no Reino Unido, decidiu fazer algo por Tom e Misha. Colocados em um caminhão refrigerado e forrado com colchões, os golfinhos foram transportados até o cercado no mar diante de Karaca. E Jeff Foster foi contratado pela fundação para um projeto ambicioso: conseguir que os bichos recuperassem a forma física e depois ensinar a eles tudo o que precisavam saber para viverem de novo em liberdade nas águas do Egeu. “O risco era alto, pois não estamos lidando com um animal previsível nem de trato fácil”, comenta Will Travers, presidente da fundação. “Mas eles iriam morrer se nada fosse tentado.”
As questões éticas relativas à manutenção de golfinhos em cativeiro, sobretudo com fins de entretenimento público, tornaram-se mais candentes agora que estamos ficando conscientes da capacidade intelectual e cognitiva desses mamíferos. Afinal, os golfinhos estão entre as espécies mais inteligentes do planeta: têm consciência de si mesmos, são sociais e possuem cérebro volumoso e complexo para o tamanho de seu corpo. Se comunicam de maneira articulada e recorrem a “assobios-rúbricas” que funcionam como nomes individuais. Podem se reconhecer diante de um espelho, entendem conceitos abstratos, e já mostraram compreender gramática e sintaxe.
Nos últimos 50 anos, foram colocados em liberdade menos de três dúzias de golfinhos que haviam vivido em cativeiro por longos períodos – com resultados ambíguos e quase sempre inconclusivos. Por isso, Tom e Misha ofereciam uma oportunidade de aperfeiçoar a técnica de ensinar um golfinho a viver de novo em condições naturais. “Esse é o tipo de coisa que mexe muito com as pessoas”, diz Travers. “Se tivermos êxito com Tom e Misha, vamos servir de inspiração para outros casos similares.”
Tom e Misha também oferecem a Jeff Foster a chance de uma redenção. Simpático e de cabelo loiro comprido, Foster tem a compleição corada de alguém que prefere viver longe de locais fechados. Filho de um veterinário de Seattle, sempre teve interesse nos animais e, com 15 anos, passou a trabalhar em um aquário particular da cidade, o Seattle Marine. A partir de 1976, quando estava com 20 anos, ajudou Don Goldsberry, que se tornou o mais prolífico coletor de mamíferos marinhos para o parque aquático SeaWorld, a montar um esquema de captura de orcas, as “baleias assassinas” – a maior espécie de golfinho –, com base na Islândia. Durante os 14 anos seguintes, Foster participou da busca, em áreas ao largo dos Estados Unidos e da Islândia, de cerca de duas dúzias de orcas para o SeaWorld e outros parques aquáticos. Também recolheu dos mares golfinhos menores, leões-marinhos, focas e outras espécies usadas em espetáculos.
Tom e Misha nadam em um cercado no Mar Egeu. Os cetáceos em cativeiro ficam tão acostumados a comer peixes mortos da mão do adestrador que perdem o gosto por alimentos vivos. Antes de serem libertados, precisam reaprender a caçar - Foto: Jeff Foster
Embora Foster não tenha se preocupado em demasia com a questão de Tom e Misha estarem ou não contribuindo para que pagasse uma dívida cármica passada, o novo trabalho lhe pareceu apontar na direção certa. Ele havia capturado a sua primeira orca porque ela era uma maneira bem mais interessante de ganhar a vida do que preparando hambúrgueres, e também porque achava que era o melhor jeito de entender um animal pouco conhecido. No entanto, ao escutar os guinchos desesperados dos filhotes solitários e presos no convés do barco, percebeu a complexidade da questão moral. E fez tudo o que podia com as mãos e a voz para acalmar os apavorados e desorientados filhotes de orca, recusando-se a adotar a prática daqueles que usavam a oferta e a recusa de comida para domar esses animais e torná-los submissos. Mesmo assim, conta ele, “quanto mais você faz isso, mais se dá conta de que está destruindo famílias. Não dá para se sentir bem ao arrancar um animal do seu hábitat”.
Cativeiro x habitat natural
Ironicamente, a larga experiência de Jeff Foster na captura de golfinhos significava que ele era qualificado para conduzir o processo inverso, ou seja, do cativeiro para a natureza. Mas também o tornava um parceiro estranho à Fundação Born Free. “Como ele estava muito identificado com as iniciativas de captura, não há como negar que ficamos nervosos”, diz Alison Hood, encarregada de supervisionar o projeto para a entidade. Foster calculou que todo o processo de reabilitação de Tom e Misha e de preparação para que fossem soltos levaria de seis a oito meses, a um custo de meio milhão de dólares – que pagariam os cercados, o pessoal, o equipamento, a alimentação dos golfinhos. Já a Born Free contava gastar menos da metade disso. Bem, ambos estavam errados.
Preparar golfinhos que cresceram na natureza e depois foram capturados para que voltem a viver no ambiente que conheciam tão bem não é tarefa simples. Um golfinho em cativeiro tem a mesma anatomia e o mesmo DNA de quando vivia em condições naturais, mas, sob muitos aspectos, se trata de um animal diferente. Um golfinho livre vive em condições imprevisíveis e marcadas pela competição. Ele socializa e caça em uma vasta área oceânica, movendo-se quase sem parar, topando com uma multidão de espécies e com novas situações. Com exceção dos momentos em que emerge para respirar, passa quase todo o tempo submerso.
Já a experiência deles em parques aquáticos é o contrário disso. Eles ficam confinados em um espaço restrito e desprovido de estímulo, a vida é regulada por horários precisos e não há necessidade de caçar e buscar alimento. Fora dos treinos e espetáculos, também não precisam se movimentar muito. O mais notável é que, em cativeiro, ocorre uma mudança crucial no senso de orientação do golfinho: o mundo acima da superfície de repente se torna bem mais importante que o submerso. Quase todas as atividades – desde a alimentação, passando pelas sessões de adestramento, pelos aplausos e pelas instruções recebidas durante os espetáculos – ocorrem fora da água. Estima-se que os golfinhos em liberdade passem cerca de 80% do tempo submersos. Em cativeiro, por outro lado, eles passam 80% do tempo na superfície da água ou fora dela.
A última orca que Foster capturou foi em 1990; depois disso, só outras espécies de golfinho e leão-marinho. Porém, passou a dedicar mais tempo ao estudo dos cetáceos em condições naturais e, de 1996 a 2001, esteve empenhado na tentativa de devolver Keiko, a orca que estrelou o filme Free Willy, ao mar ao largo da Islândia, onde nascera. (Keiko foi libertada em 2002, mas, no ano seguinte, morreu de pneumonia.) “Aqueles que vivem dos golfinhos em cativeiro veem com muita desconfiança o trabalho que fazemos. Eu me tornei uma espécie de pária”, conta Foster. “Mas não sou contrário ao cativeiro. Estou apenas tentando fazer a coisa certa.”
A famosa orca Keiko (do filme Free Willy) foi solta em 2002, após mais de 20 anos em cativeiro. Ela não se reintegrou a nenhum grupo selvagem e continuou a buscar comida com seres humanos. Embora tenha morrido depois de apenas um ano, sua libertação estimulou a soltura de outros golfinhos - Foto: Jeff Foster
Foster sempre se orgulhou de tentar entender as necessidades dos animais que capturava de modo a poder facilitar a transição desorientadora e estressante do mundo natural para o humano. Foi impossível obter informações acuradas sobre o passado de Tom e Misha, mas o pessoal da Born Free imaginou que os dois haviam sido capturados nas proximidades do importante porto de Izmir e depois mantidos em cativeiro durante quatro anos. Tom era menor, mais animado e parecia ser o mais jovem da dupla. Mostrava-se ansioso para agradar e aparentava estar mais bem adaptado à vida em cativeiro.
Misha, por outro lado, mantinha-se à parte, desconfiado de qualquer novidade. Não fazia questão de se relacionar com o mundo humano e ficava no cercado olhando para o lado do mar aberto. “O modo como os golfinhos encaram o cativeiro depende do jeito como foram introduzidos nessa situação”, conta Foster. “Quando a gente não faz a preparação adequada, pode acabar com animais bem neuróticos.”
Preparação para voltar ao oceano
Os duradouros efeitos da atribulada existência de Tom e Misha em parques aquáticos eram evidentes no estado letárgico e no fato de estarem cerca de 20% mais magros do que deveriam: tinham tão pouca gordura que as costelas estavam visíveis. Os preparativos para que retornassem ao mundo dos golfinhos silvestres não se restringiam apenas à questão de treiná-los de novo na caça de peixes para alimentação, na diminuição dos contatos com os seres humanos e na abertura do portão do cercado. Foster sabia que iria precisar de uma abordagem menos óbvia e que recorresse aos mesmos instrumentos (o apito e o bastão do adestrador) e métodos (“condicionamento operante”, que recompensa os comportamentos desejáveis e ignora os indesejáveis) empregados em parques aquáticos de todo o mundo para treinar os golfinhos.
Ambos os golfinhos tinham de aprender a aceitar cuidados básicos, como a coleta de amostras de sangue e de material em seus orifícios de respiração. Foster também não via como restaurar a forma física que Tom e Misha iriam precisar para sobreviver no oceano se antes não os submetesse a um intenso regime de corridas, saltos e deslocamentos sobre a cauda visando recuperar a força e o tônus dos músculos.
Como tais exercícios vigorosos requerem muitas calorias, o primeiro objetivo foi fazer com que Tom e Misha abandonassem os hábitos alimentares inadequados e voltassem a se acostumar com os peixes que encontrariam no Egeu, como tainha, anchova e sardinha. A estratégia era oferecer a eles espécies locais – se as comessem, seriam recompensados com as cavalinhas que haviam aprendido a gostar em cativeiro. Para reproduzir a imprevisibilidade dos alimentos em condições naturais, Foster passou a variar a quantidade e a frequência das refeições. “Quando levados ao cativeiro, tudo acaba sendo muito definido, desde a alimentação até as apresentações”, comenta. “Eles passam a seguir um relógio interno e sabem exatamente quando vão ser alimentados. Temos de reverter isso, pois, no mar, vão comer de modo irregular.”
Outro objetivo de Foster foi estimular o extraordinário cérebro dos golfinhos. Assim, deixava cair no cercado animais que eles talvez não tivessem visto há muito tempo, como um polvo, uma água-viva ou um siri. Abriu orifícios em um cano de PVC e o encheu de peixes mortos. Tom e Misha tinham de descobrir como manusear o cano de modo que os peixes saíssem pelos buracos. “No cativeiro, treinamos os animais para que não pensem por conta própria, para que desliguem o cérebro e façam apenas o que lhes pedimos”, diz. “Porém, quando vamos soltá-los no mar, o que precisamos é que deixem de lado o piloto automático e voltem a usar a cabeça.”
O cano com peixes apresentava ainda outros benefícios. Como ficava flutuando a 1,5 metro de profundidade, Tom e Misha voltaram a se conscientizar de que o alimento se encontra debaixo da superfície. O cano também ajudou a dissociar os seres humanos do fornecimento de comida. “A ideia era fazer com que entendessem que nem sempre os peixes vinham de um balde prateado e das mãos de uma pessoa”, diz Amy Souster, uma jovem adestradora que participou do projeto.
O treinador Jeff Foster submete Tom e Misha a um regime de intensos exercícios físicos. No cativeiro, os golfinhos perdem a forma física. Em vez de caçar e nadar nas profundezas, passam quase todo o tempo na superfície ou perto dela - Foto: Z. Derya Yildirim
Conseguir com que Tom e Misha reunissem todas as condições para enfrentar o oceano foi um processo gradativo, que se estendeu por toda a primavera de 2011, exigindo até 20 sessões de aprendizado por dia. Na época em que se aproximavam os meses quentes do verão, Foster tinha a esperança de que os golfinhos estariam prontos para a soltura no princípio do outono. Todavia, sob o calor estival de 26°C ou mais – temperaturas estressantes para os animais –, Tom e Misha perderam o apetite e acabaram afetados por uma quase fatal infecção sanguínea, debelada apenas com a alimentação forçada de emergência e doses maciças de antibióticos. “Sem dúvida, eles iriam morrer em poucos dias”, lembra-se John Knight, veterinário da fundação. “Foi por pouco.” Tom e Misha não eram especialmente ligados um ao outro; na verdade, apenas se toleravam. Mas Amy ficou emocionada ao ver Misha cuidando de Tom, empurrando-o para a superfície a fim de ajudá-lo a respirar sempre que afundava no cercado e oferecendo-lhe peixe.
Para piorar ainda mais a situação, no fim do verão, os moradores de Karaca deixaram bem claro – furando pneus dos carros da fundação, riscando-os com chave e chegando até a ameaçar de estupro as mulheres – que não toleravam mais aquele projeto que ocupava parte da baía. Em outubro de 2011, o cercado, com Tom e Misha dentro, foi rebocado a um novo local do outro lado da baía e fixado perto de uma escola de vela, que ofereceu à fundação o uso das suas amplas instalações. Foster e seus colaboradores redobraram os esforços, com especial ênfase no condicionamento físico dos golfinhos. Um dos exercícios mais frequentes requeria que os cetáceos nadassem de uma extremidade a outra do cercado, em breves arrancadas.
O cercado agora estava ancorado a 30 metros de uma praia com árvores, possibilitando a Foster reutilizar uma inovação predileta da época de Keiko: um estilingue gigante, montado sobre uma base rotatória, por meio do qual era possível atirar peixes com rara precisão em diferentes pontos do cercado. Além de distribuir alimento sem envolvimento humano direto, o estilingue estimulava Tom e Misha a permanecer em constante movimento, tal como os golfinhos em liberdade. Não demoraram a entender a ideia, e o mero som da atiradeira em funcionamento já estimulava os seus reflexos predadores. “Eles nem mesmo pensavam. Já ficavam à espera do que iria cair na água”, conta Foster. “Foi então que tive certeza de que era o momento de introduzir peixes vivos na alimentação deles.”
Um dos efeitos mais curiosos do cativeiro é que os golfinhos, ainda que retirados adultos da natureza, acabam por esquecer de que é possível caçar e comer peixes vivos. Tom e Misha viam cardumes passando pelo cercado como se estivessem assistindo televisão. Foster foi obrigado a ensiná-los de novo a perseguir, capturar e devorar esses animais. Começou misturando peixes vivos em meio a punhados de mortos lançados na água. No decorrer do tempo, os animais vivos foram constituindo parte cada vez maior das refeições, até que os golfinhos afinal se familiarizaram de novo com o gosto e com a ideia de que tinham de ir atrás da comida.
Em seguida, Foster usou galões de 20 litros, com tampas que podiam ser abertas por controle remoto, para soltar peixes vivos no cercado em múltiplos pontos e em diversas profundidades, de novo excluindo os seres humanos da equação e enfocando a atenção de Tom e Misha no ambiente subaquático. Ambos os golfinhos começaram a passar mais tempo atrás de peixes nas profundezas do cercado, até mesmo usando as bolhas produzidas em seus orifícios respiratórios para expulsar peixes de locais a que não tinham acesso. Amy era cética quanto à possibilidade de golfinhos cativos serem devolvidos à natureza. “Mas aí vi como Tom e Misha foram mudando, deixaram de ser letárgicos e dependentes dos seres humanos, à espera de alimentos servidos em baldes, e virando animais loucos por peixes vivos e atuando tal como se espera de golfinhos silvestres”, diz ela. “Foi algo incrível.”
Foster era da mesma opinião. Havia chegado o momento de abrir os portões.
Reintrodução
O dia 9 de maio de 2012 amanhece muito límpido e com um promissor céu azul-cobalto. Um grupo grande de membros e simpatizantes da Fundação Born Free se reúne no local. No início da manhã, radiotransmissores haviam sido presos nas nadadeiras dorsais de Tom e Misha, de modo que, por meio do rastreamento por satélite, Foster e o pessoal da Born Free pudessem mais tarde saber como eles iriam se virar nas águas do Mar Egeu – se conseguissem sobreviver a um período de seis meses, a operação teria êxito. “Se, aos três meses, a gente notasse que um animal estava mais lento e circulando por uma área cada vez menor, ele poderia estar ficando desnutrido”, explica Foster.
Quando tudo está pronto, um mergulhador desliza um portão, abrindo uma passagem na rede metálica que isola o cercado. O grande momento chega, mas Tom e Misha não se abalam: ficam onde sempre estiveram. Depois de 20 minutos de inércia cada vez mais constrangedora, Amy Souster estende o braço direito e o move para baixo próximo ao corpo, transmitindo a eles pela última vez um comando humano: o sinal para irem de um ponto a outro. Tom cumpre a ordem e nada para fora do cercado, parando 10 metros adiante. Misha segue atrás de Tom, mas aí passa por ele e, em vez de parar, ganha velocidade e toma o rumo da saída da baía. Tom sai correndo para alcançá-lo. Se havia alguma dúvida sobre como os golfinhos cativos iriam reagir ao mar aberto, ela logo se dissipa. “Não se passaram nem seis horas e eles já estavam se alimentando de peixes e nadando com outros golfinhos”, conta Foster. “Foi emocionante.”
Rastreados, os dois animais seguem juntos, nadando quilômetro após quilômetro na direção de Izmir. Então, após uma jornada de cinco dias, cada qual segue o seu caminho. Não é nenhuma surpresa para Foster. Tom prossegue na direção oeste. Misha nada para o sul e o leste. “Quando partiu, nem sequer olhou para trás”, diz Foster.
Em meados de outubro, cinco meses após a soltura, o radiotransmissor implantado em Tom emudece. O de Misha continua a enviar sinais até o fim de novembro, quando também deixa de transmitir. Foster e a Born Free contavam que os aparelhos ficariam ativos ao menos por nove meses, mas de qualquer modo funcionaram por tempo suficiente para indicar que Tom e Misha haviam se adaptado à nova vida no Egeu. Depois de 20 meses de esforços, a um custo de 1 milhão de dólares, Foster e a fundação haviam comprovado que até mesmo golfinhos muito maltratados em cativeiro podiam reaprender a se virar em ambientes naturais.
Jedol, Chunsam e Sampal
Um ano depois e a meio mundo de distância, outro processo similar e bem documentado de libertação de três golfinhos cativos reforça de modo enfático essa conclusão. Em 18 de julho de 2013, é aberta uma passagem nas paredes de um cercado no litoral rochoso ao norte da Ilha Jeju, um conhecido destino turístico na ponta meridional da Coreia do Sul. Dois golfinhos-nariz-de-garrafa-do-índico, Jedol e Chunsam, hesitam um pouco antes de sair nadando rumo ao mar aberto. Juntamente com uma fêmea, conhecida como Sampal, tinham sido ilegalmente capturados entre 2009 e 2010, ao redor da Jeju, e depois vendidos ao Pacific Land, um parque aquático na própria ilha. Uma campanha organizada pela Associação Protetora dos Animais da Coreia resultou em uma sentença judicial ordenando a libertação dos animais.
Os três golfinhos foram treinados para realizar todos os truques costumeiros – saltos, deslizamentos sobre a cauda, giros e sincronização dos movimentos das caudas – em espetáculos no parque Pacific Land. Em seguida, Jedol foi vendido ao Zoológico de Seul, onde apresentava muitas dessas acrobacias no seu programa de cetáceos. Depois da sentença do tribunal, Chunsam e Sampal foram levados ao cercado marinho da Ilha Jeju no princípio de abril de 2013; Jedol lá chegou um mês depois. O zoo de Seul enviou um treinador, Joo Dong Seon, com a missão de preparar os golfinhos para a liberdade.
Os três animais eram mantidos em boas condições físicas; além disso, quando capturados, já eram mais velhos e experientes. Por isso, a estratégia para devolvê-los ao oceano acabou sendo mais simples do que no caso de Tom e Misha: o contato humano foi reduzido ao máximo e os golfinhos foram treinados para sobreviver com uma dieta de peixes vivos locais. Num prazo de poucas semanas, eles recuperaram a capacidade de caçar e se alimentar com esses peixes, reaprendendo até mesmo a lidar com as espinhas, tal como os primos selvagens.
Tal como no caso de Tom e Misha, a ingestão de comida, a forma física, o peso e as condições de saúde foram objeto de exaustiva observação para determinar os critérios da libertação. Sampal, no entanto, tinha outras ideias, e escapou por um pequeno buraco no cercado em 22 de junho, logo após uma lauta refeição. Alguns dias depois, usando técnicas de identificação fotográfica, os pesquisadores constataram que a fêmea havia se incorporado ao grupo de golfinhos em liberdade. Três semanas depois, Jedol e Chunsam foram soltos. Ambos tinham um número inscrito na nadadeira dorsal e carregavam um radiotransmissor, que se despregou cerca de três meses depois. Também eles não demoraram a se juntar de novo com Sampal e o seu grupo.
Facilmente identificada pelo “2” traçado em sua nadadeira dorsal, Chunsam nada perto da Ilha Jeju. Depois de anos em cativeiro, o golfinho libertado voltou sem demora ao seu grupo original, o que aumentou suas possibilidades de sobrevivência - Foto: Brian Skerry
O episódio na Coreia do Sul demonstra que, quando os animais estão saudáveis, há boas condições locais e um grupo de golfinhos por perto, a transição do cativeiro para a liberdade pode se dar relativamente sem problemas e em poucos meses. O que reforçou a ideia de que os golfinhos em cativeiro não precisam permanecer nessa condição para sempre. “É provável que um terço dos que estão hoje confinados possam ser postos em liberdade”, diz a bióloga Naomi Rose.
Embora diga que não mais pretende participar da retirada de golfinhos dos mares para espetáculos acrobáticos, e que considera a libertação uma opção viável a muitos cativos, incluindo as orcas capturadas em ambiente natural, Jeff Foster ainda está convencido de que a exibição de animais cativos – caso seja feita de modo correto – pode ajudar os seres humanos e os golfinhos a estabelecer um relacionamento positivo. Ele gostaria de ver o já batido modelo de exibições em tanques artificiais substituído por apresentações em cercados oceânicos com portões abertos, em um contexto de iniciativas educativas e científicas. “A gente daria uma opção aos animais”, diz ele. “Tom provavelmente teria aceito a proposta; ao contrário de Misha.”
Tais questões serão discutidas no futuro, mas Tom e Misha cumpriram o seu papel e sumiram nas profundezas marinhas. O anonimato é uma característica crucial do mundo natural, e há algo de inspirador no fato de ter sido proporcionada a eles a chance de desaparecer.
Por outro lado, também é fascinante conhecer os desdobramentos do outro caso. Em um belo dia de maio de 2014, um pequeno barco de pesca topa com um grupo de 60 a 70 golfinhos-do-índico que nadam próximo ao litoral nordeste da Ilha Jeju. Alguns estão caçando; outros brincam. Com a inquietação frenética e um tanto cômica de crianças ansiosas, os pequenos filhotes tentam acompanhar as mães. Todos são golfinhos perfeitamente integrados ao ambiente natural, formando uma comunidade complexa com seus próprios hábitos, ritmos e prioridades.
De repente, um golfinho emerge com um pequeno “1” esbranquiçado e visível na nadadeira dorsal. É Jedol. Pouco depois, surge um “2”, anunciando a presença de Chunsam. Aqueles números tinham uma aparência bizarra e deslocada em meio à confusão frenética. Mas eram uma comprovação, emocionante, de que os dois golfinhos estavam, enfim, no lugar certo: na imensidão do oceano, ali onde haviam nascido e onde agora vão passar o resto das suas vidas.

Fonte: http://viajeaqui.abril.com.br/materias/golfinhos-criados-como-atracoes-de-parques-aquaticos-sao-reintroduzidos-na-natureza?utm_source=redesabril_viagem&utm_medium=facebook&utm_campaign=redesabril_ngbrasil

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